rotinas com afeto

em 1993, Bill Murray estreou uma comédia romântica chamada Feitiço do Tempo – e eu dificilmente lembro desse nome oficial. pra mim, esse filme é aquele do “dia da Marmota“. faz sentido porque, literalmente, o personagem do Bill, Phil, fica preso no que é considerado o dia da Marmota numa cidade bem X nos Estados Unidos. a premissa é uma que a gente já viu em outros filmes (inclusive um bem fofinho que eu vi há umas semanas no Amazon Prime, chama Map of Tiny Perfect Things), da pessoa que fica presa revivendo um único dia até encontrar a resposta pra uma grande questão filosófica sobre a vida. o Phil tem certeza que tá no purgatório da vida dele e não tem ideia de como sair daquilo.

400 dias iguais

eu tava me sentindo meio assim. são 15 meses de pandemia, dos quais 14 meses e 3 semanas eu passei dentro do meu apartamento em São Paulo, saindo pouquíssimas vezes. a única semana que passei longe foi no Ano Novo, cinco dias isolada no meio do mato, sem nem sinal de internet direito. mas, sim, já são mais de 400 dias vivendo quase a mesma coisa, numa segunda-feira eterna, que parece que ainda vai demorar pra acabar (apesar de eu preferir ser do time dos otimistas).

mas eu tava me sentindo vivendo dias idênticos, em que eu acordava pra fazer as mesmas coisas, nos mesmos lugares, com as mesmas pessoas, em dias que começavam e terminavam do mesmo jeito até que tudo virou um grande bololô no meu calendário e eu nem sabia dizer se a gente tava no começo ou no fim de uma semana.

entra aí o Austin Kleon, esse ser maravilhoso. eu tô relendo Siga em Frente junto com os membros do clube de escrita desancorando, e logo no primeiro capítulo ele fala sobre essa sensação – e inclusive cita o filme do dia da Marmota. mas tem duas coisas que precisam ser consideradas:

  1. esse livro foi escrito antes da pandemia, ou seja, o Austin não tinha nem ideia do quanto a gente ia vivenciar isso na pele nos anos que viriam depois do lançamento (em abril de 2019);
  2. ele oferece uma visão sobre isso, em relação ao trabalho criativo, que foi um tapa na minha cara.

eu li Siga em Frente uma única vez desde que comprei a minha edição, ainda em inglês, em abril do ano passado (ou seja, já em pandemia e um ano depois do lançamento oficial), mas sinto que não tinha entendido do que ele falava até esse momento de agora, em que eu me sentia num grande dia da Marmota, numa reunião por zoom que nunca acaba, em dias absolutamente iguais, em que nada de (aparentemente) significativo acontece. enfim, o Austin começa essa reflexão lembrando de uma pergunta que o Phil faz no filme:

o que você faria se estivesse preso em um único lugar, e todos os dias fossem exatamente os mesmos e nada do que você fizesse importasse?

o Austin diz que, apesar dessa pergunta ser fundamental pra que a trama do filme avance, ela também é fundamental pra fazer com que a “trama da nossa vida” avance. e ele fecha essa ideia de um jeito tão bonito, sabe? ele fala assim:

eu penso que como você responde a essa pergunta é a sua arte.

acho que é aí que entram alguns aprendizados que eu tive nesse tempo em casa, sabe? longe de mim romantizar uma pandemia, eu faço parte do time privilegiado que não só pode como tem optado por ficar em casa pensando no coletivo (falando nisso, ✨ usem máscara✨). mas olhar pra essa história toda por um viés 100% negativo não faz bem pra ninguém, mesmo pra mim. e eu percebi que era exatamente isso que eu tava fazendo.

eu tava lidando com uma sensação de estagnação, sabe? de que nada do que eu fazia importava, de que os meus dias tavam entediantes demais, que nada tinha nenhum sentido e se vamos falar sobre arte vamos falar também sobre o fato de eu acreditar ainda que não sou artista? escrever é arte? minha nossa, eu mesma já escrevi sobre isso e ainda tenho as minhas dúvidas.

enfim.

só que aí, gente, entra uma coisa meio maravilhosa. o Austin pega esse gancho e começa a falar sobre rotinas. tipo… rotinas! num é meio chocante? porque ele não começou a falar sobre os artistas serem espíritos livres, que devem fazer o que bem entendem da vida, e viver cada dia como se fosse algo absolutamente diferente do outro, um dia em Nova York, outro em Paris, um jantando com políticos (Deus me dibre), outro comendo yakissoba podrão na Paulista. ele fala sobre rotinas, sobre estrutura.

porque, se você parar pra pensar, a vida é um grande conjunto de dias da Marmota. e esperar que cada dia seja absolutamente diferente do anterior é muito frustrante. e eu me vi nisso, sabe? a ilusão de que uma vida “normal” (entenda, pré-pandemia) não tem a sua vibe de dia da Marmota é só isso mesmo, uma ilusão. porque a gente convive com as mesmas pessoas e faz as mesmas coisas e vez ou outra foge um pouco do que tá acostumado e tenta coisas novas… e isso pode parecer um problema, porque a gente fique esperando que o mundo ofereça coisas extraordinárias pra gente…

… mas não tem coragem de fazer coisas extraordinárias com o que tem.

vem comigo, eu juro que vai fazer sentido.

o que o Austin defende é que a grande resposta pra pergunta do Phil tá em, justamente, ter a perseverança de levantar da cama de manhã e fazer exatamente a mesma coisa, tentando de novo e de novo até que você tenha uma coisa linda pra mostrar pro mundo. sabe? a arte é tentativa e erro, é prática, é rotina.

independentemente do que tava acontecendo com o mundo, os verdadeiros artistas acordavam todas as manhãs e continuavam fazendo o que sempre fizeram, sem uma preocupação com sucesso, fracasso, com números e algoritmos. mas eles faziam porque amavam o que faziam e tinham no coração um desejo de fazer coisas bonitas.

a única coisa que a gente pode realmente controlar é como passamos os nossos dias. no que trabalhamos e o quanto trabalhamos nisso. – austin kleon

e parece que caiu uma ficha aqui de como eu tava fazendo exatamente o contrário disso, me martirizando por viver um dia igualzinho ao outro porque o mundo tá o próprio caos, o Brasil nem se fala, e esperando por um milagre, esperando que alguma coisa mudasse o curso das coisas.

mas, veja só, a única pessoa que pode mudar o curso de qualquer coisa sou eu mesma.

e parece que as rotinas, o cotidiano, ganharam uma nova camada de verniz, tudo parecia um pouco mais brilhante, um pouco mais interessante, porque a única coisa que eu posso controlar é como eu passo os meus dias, no que eu trabalho e o quanto trabalho nisso.

e eu não tô dizendo que eu não tenho dias ruins, complexos, complicados, mas a rotina (meu Deus, a rotina, sabe?) cria um nível de estrutura que me permite chegar até a hora de dormir minimamente estável. eu tava brigando com a minha rotina quando, na verdade, ela é a única coisa que me mantém no caminho.

o Austin fala disso também, que o objetivo não precisa ser ter um dia maravilhoso, mas só chegar até o fim do dia. se você chegou até o fim de mais um dia, parabéns!, você merece um tapinha nas costas, um auto-abraço e a esperança de que amanhã – apesar de minimamente igual -, será outro dia, com outras oportunidades que você pode aproveitar.

perdi a conta de quantas vezes eu pensei isso no último ano, mesmo sem fazer a conexão com o livro… “o dia tá quase acabando, amanhã é outro dia, vamos em frente”.

o que tava me gerando conflito era a ideia de que eu teria um jeito de fazer as coisas e as coisas aconteceriam de uma forma que desenvolver o meu trabalho criativo seria simples e fácil. mas a estrutura que eu precisava não tava disponível pra isso, então, eu ficava brigando com a agenda, esperando que acontecesse uma mágica e a coisa toda se resolvesse sozinha.

mas é sobre uma prática diária. um acordar-pra-viver-o-meu-dia-da-Marmota, mas tentar fazer desse o melhor dia da Marmota e, se isso não for possível, pelo menos chegar no fim do meu dia da Marmota.

acho que, no geral, o que esse livro me despertou foi essa paixão pela palavra perseverança, sabe? e o quanto eu tava deixando a desejar na minha própria perseverança em fazer o que eu amo. não dá pra desconsiderar o contexto, nem os momentos em que eu precisei de ajuda pra lidar com o que eu sentia e a pensava, muito menos que eu vivo, sim, uma situação de enorme privilégio, numa bolha segura e quentinha. mas, dentro disso, eu precisei buscar um conforto e um mínimo de auto-cuidado genuíno pra saber quando seguir a rotina era importante, quando o meu corpo precisava de descanso (você lembra que eu to aprendendo na marra, né?) e quando ficar longe do celular num era nem só necessário, era quase uma obrigação, pelo bem da minha saúde mental.

per·se·ve·ran·ça:
qualidade de quem persevera; persistência bastante forte; constância, firmeza, pertinácia, tenacidade.

o Austin fala isso também, que pra você entender a sua prática diária, você precisa observar o seu humor, os momentos melhores e não tão legais, pra construir uma rotina que você consiga “seguir a maior parte dos dias, quebrar de vez em quando e modificar quando necessário“.

parece que ter uma rotina é uma prisão, mas a prisão tá em achar que só porque você vive uma coisa, tem que ser assim pra sempre, como uma condenação. mas eu tenho poder sobre os meus dias e como eu escolho vivê-los, né? então, porque não tirar o máximo proveito disso?

e não é entrar na pira da produtividade, é sobre usufruir o que eu já conquistei até aqui e ajustar o que precisa ser ajustado pra que a minha criatividade tenha espaço pra respirar.

de repente, viver dias da Marmota não me pareceu um purgatório, mas uma oportunidade de construir algo lindo, que eu amo e do qual me orgulho. que compartilhe com as pessoas porque me dá um quentinho no coração – e esperando que esse quentinho alcance cada vez mais pessoas que façam a mesma coisa com os seus próprios dias da Marmota.

sei lá, tem algum momento no seu dia que você, hoje, realmente ame? me conta qual é nos comentários! eu descobri todo um novo carinho por observar a vista da minha janela. virou parte da minha prática diária, analisar como a luz bate nos prédios em diferentes horários do dia, me inspira e me nutre quando eu passo tempo demais olhando pra uma tela artificial.

já são mais de 400 dias iguais. mas me sinto grata por cada um deles, sabe? porque me trouxeram até aqui, até esse entendimento, até uma nova visão sobre rotinas como um facilitador do que eu quero viver e experienciar cotidianamente. se isso vai valer a pena ou não… só o tempo vai dizer. e, numa era de tanto imediatismo, esperar o tempo tomar o seu próprio tempo me parece uma ótima ideia.

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Escrito pelaMaki
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4 Comentários
  1. Bianca  em junho 17, 2021

    dentre todas as coisas que eu pensei que teria que enfrentar durante o ensino médio uma pandemia não estava nem nas minhas ideias mais loucas. antes disso tudo eu tinha uma rotina e a adorava, apreciava acordar cedo e encontrar pessoas que eu gostava. depois de mais de um ano de pandemia eu fui reparar que o problema então não estava em ter uma rotina em si, fazer a mesma coisa todo dia, e sim de ter uma que eu me sentisse ansiosa (de um jeito bom) para realizar. foi ai que isso de pequenos hábitos e práticas se tornou o game changer. eu acordo junto com o céu (que todo dia amanhece diferente), tomo meu chá em uma xícara especial acompanhada de algum vídeo acolhedor e começo meu dia. lá na metade dele, naquele momento que eu sinto que preciso de um combustível de felicidade para chegar até o final do dia eu faço mais uma pausa para o chá da tarde com uns biscoitinhos. mas acho que de tudo a rotina da noite se tornou minha favorita: olhar o sol se por, ler posts dos blogs que eu acompanho, escrever no diário durante a golden hour, acender uma vela aromática, praticar yoga, ler um pouquinho e assistir a alguma série de aquecer o coração. eu fico pensando que vai valer a pena passar pelo dia todo e chegar nesse momento noturno. nessa bolha segura e confortável que eu estou percebi que uma das questões é trabalhar com o que eu tenho e me tornar a artista da minha vida, percebendo que minha vida é uma obra de arte e uma arte em progresso ao mesmo tempo.

    • Maki  em agosto 07, 2021

      Bianca, o seu comentário foi um tapa na minha cara, sério! você falou coisas tão bonitas, mas tão bonitas, que me peguei questionando justamente tudo isso… o quanto eu tenho sido artista da minha própria vida e tenho construído dias que eu amo viver. acho que já mudei muito e hoje me sinto muito feliz com o que vivo, mas você me trouxe um (necessário) upgrade. obrigada ♥︎♥︎

  2. Camila Faria  em junho 16, 2021

    Acho que todo mundo (salvo raríssimas exceções) já teve essa sensação de estar preso no dia da marmota, mesmo antes da pandemia. Todo mundo que já teve um emprego chato e repetitivo, um relacionamento estagnado, uma falta de perspectiva geral… A pandemia agravou essa sensação, sem dúvida. Eu me vejo muitas vezes assim, nesse ciclo interminável de dias, sempre muito iguais. Linda essa visão do Austin Kleon, deu vontade de ler para me sentir mais inspirada a transformar esses dias em algo positivo. <3

    • Maki  em agosto 07, 2021

      Cami, acho que você vai amar esse livro, sério! ele é perfeito demais e muito inspirador!