inspiração

Um dia, ela percebeu que existia. Que tinha braços e pernas, que tinha cabelo, nariz, boca, mãos, dedos. Que tinha um coração que batia forte no peito e um cérebro que processava tantas ideias quanto achava possível. Tinha um pulmão, que puxava o ar com força para dentro e soltava aos pouquinhos, com uma cadência suave.

Ela tinha olhos, mas não conseguia ver. Vivia no escuro, mas sabia que não era cega. Vez ou outra, via movimentos, sombras que iam de um lado pro outro pela escuridão, sem seguir um padrão ou um caminho específicos.

com vocês: um conto

Tateava bastante, tentando entender pra onde deveria ir, que caminho seguir. Mas não enxergava, e sentia com as mãos que vivia num espaço pequeno, porém confortável. E era assim.

Ela acordava, tateava um pouquinho. Observava as sombras, pensava seus pensamentos, respirava, voltava a dormir.

Ela aprendeu que a vida era isso. Essa sucessão de atividades, em que nada parecia fazer muito sentido. Achava normal sentir frio o tempo todo. Também achava normal o estômago gelar e o coração bater mais rápido quando ouvia qualquer barulho desconhecido, ou quando uma das sombras se aproximada dela. Nesse caso, o tal estômago-gelado-e-coração-disparado era chamado de amor.

Quando encontrava esse tal amor, se sentia mais corajosa e, junto com a sombra, tateava um pouco mais adiante. Nessas horas, achava que poderia existir muito mais do que o espacinho 4×4 em que ela vivia. E iam juntos.

Acontece que esse amor não durava muito, e, uma vez, depois de um amor muito intenso, ela chorou, porque percebeu que suas mãos chegaram em barras de ferro altas, geladas e fincadas no chão. Aprendeu então que de nada adiantava encontrar todo o amor do mundo, porque estava aprisionada.

Ela ficou triste. Ela chorou mais. Ela achou que não tinha mais saída e pensou que talvez fosse melhor que ela deixasse de existir. Talvez fosse a opção mais plausível mesmo, que horrível seria continuar vivendo assim, cercada por grades.

Abraçava os pedaços frios de metal e continuava pensando os seus pensamentos, imaginando paisagens coloridas, lugares mágicos e o cheiro de um campo de flores. Pensava em sentir o sol na pele e o vento batendo no rosto, vindo do mar. Sonhava com cores, gostos e cheiros sabia que não existiam.

Parou de tatear.

Continuava acordando, pensando, comendo, dormindo. Mas parou de tatear. Estava enfim conformada de que aquele era o seu lugar. Às vezes, recebia a visita de outras sombras, que a convidavam pra amar. Mas ela já tinha aprendido a sua lição.

Uma das sombras vinha com frequência. E ela percebeu, com o passar daquilo que ela chamava de dias, que essa sombra em particular estava mudando. Ficava cada vez mais clara, mais brilhante, e ela precisava desviar o olhar sempre que ela passava. Mas ela ficava curiosa, e queria saber de onde vinha esse brilho todo.

Um dia, ela juntou coragem pra perguntar e a sombra respondeu, ‘se você quiser, eu te mostro’. Ela sentiu medo. Mas a curiosidade falou mais alto. Ela queria ser brilhante também.

Um dedo de cada vez, a sombra que virou luz insistiu pra ela soltar as grades. Disse que ela não se machucaria, que estava tudo bem. Ela duvidou. Ela cismou que era mentira, que ela estava sendo enganada. Ela chorou de novo. Mas a luz ficou lá, paciente, esperando cada dedinho soltar as barras de metal, garantindo que nada ia acontecer, que ela estava segura.

Quando, enfim, soltou as grades. Ela gritou, esperneou. Ela chorou e pediu pra voltar. O coração batia rápido e o estômago parecia um iceberg de tão gelado. Ela sentia as mãos tremerem e a respiração ficar mais rápida e irregular.

A luz segurou suas mãos, quentinha. Disse que ela estava viajando, que precisava só abrir os olhos pra ver a verdade. Mas como assim? Eu tô com os olhos abertos! A luz riu, e disse que, aos poucos, ela ia entender.

Começou a passar mais tempo com essa luz e gostou da companhia. Era quentinha. Seu coração não acelerava quando ela estava por perto e seu estômago não ficava mais tão gelado. Era aconchegante e carinhosa.

Quando estava com a luz, percebeu que seus olhos funcionavam melhor, e que a luz, na verdade, não era só clara e branca, mas tinha um brilho dourado, bonito, parecia o sol que ela tanto imaginava.

Aos poucos, as coisas ficaram mais claras, e ela viu que o espaço em que vivia não era assim tão pequeno, mas muito mais amplo do que ela jamais poderia imaginar. A luz mostrou, com carinho, que as grades que ela tanto amava não a prendiam em lugar nenhum, eram só a proteção da janela, que ficava num andar tão alto que se ela de descuidasse, podia cair lá embaixo.

Aliás, entre as grades da janela, ela via, agora, a vista bonita. As montanhas, as árvores, o céu… Até o pôr do sol. Mais importante do que tudo isso, a luz mostrou pra ela a porta, que ela achava que nunca encontraria, a ponto de acreditar que ela nem existia de verdade. Meu Deus, logo ali! Como ela não viu?

E ela entendeu. Que não era sombra, era luz. Ela foi ficando mais clara, mais clara e mais clara. Até que começou a emanar um tom dourado-quentinho como a outra e viu que podia fazer pelos outros o que a primeira fez por ela. Ela podia sair do seu quadrado, porque ele, na realidade, foi ela mesma quem criou. Ela se prendeu ali sozinha, e chorava porque achava que o mundo cruel era quem a tinha encarcerado.

Ficou presa por tanto tempo na própria mente que esqueceu como era ver. E perdeu o carinho por ela mesma e pelos outros. Achava que o ódio sempre vencia e que o amor não valia a pena. Quer era ok estar sempre sozinha e que sofrer fazia parte da vida. Achava que não tinha problema em ter fases ruins e boas, e que desconfiar dos outros era comum.

E tudo bem. Não tinha problema nenhum nisso, porque não tinha como ela relembrar que era luz sozinha. Mas ainda bem que um lugarzinho dela buscava essa resposta. E ela se deixou guiar pela luz até voltar a ser luz também. Até que percebeu que além de existir ela também estava viva e tão cheia de amor – não aquele que assusta, o de verdade – que só o que podia fazer era procurar alguma outra sombra em busca de claridade pra ver junto de novo.

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Escrito pelaMaki
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2 Comentários
  1. Aline  em abril 07, 2016

    Maki,
    Que texto lindo. Não sei nem o que comentar, só sentir.
    Mesmo quando tudo parece escuro e triste, vai haver sempre uma luz para aquecer nosso coração.
    Um beijo! ♥

    • Maki  em abril 10, 2016

      Obrigada, Aline! Fico feliz que você gostou ♥