cotidiano

Chamava de amor uma coisa que, com toda certeza, não era amor. Achava que o amor era reservado a uma pessoa só, aquele um especial que a faria feliz até o fim da vida, daqui a, provavelmente, 60 ou 70 anos.

Diário #54 - Chamava de amor

‘Jamais desistiremos’ de encontrar o amor de verdade

Chamava de amor a preocupação que ele deveria sentir toda vez que ela voltava pra casa depois da faculdade, à noite, e também se ela comeu ou não direito no café da manhã. Se ela lembrou de tomar o remédio. Se ela ligou pra avó pra saber da cirurgia do joelho.

Chamava de amor o ciúme quase que doentio que sentia toda vez que o via conversando com outra mulher, o mesmo ciúme que fazia os dois brigarem homericamente quando ela era abordada por outro cara na balada na frente dele.

Chamava de amor os ‘me liga antes de dormir’, ‘quem é aquele?’, ‘por que você tava falando com ela?’, ‘não quero nenhuma dessas pessoas no seu Facebook’, ‘olha pra mim e não pra elas’, ‘fica comigo e não com eles’, ‘sai comigo e não com os outros’.

Chamava de amor os gritos doídos no meio da madrugada, meio bêbados e meio sóbrios, sobre aquela vez que ele não ligou quando disse que ligaria e que esqueceu de almoçar na casa da mãe dela. As lágrimas quentes manchavam a maquiagem dela e descontrolava as mãos dele, que arrancava os cabelos quando ficava nervoso porque ele simplesmente não sabia o que ela queria dele. Ou o que ele queria dela.

Chamava de amor os beijos desesperados e os abraços que urravam ‘me salva’. Todas as vezes que dormiam juntos, as pernas nuas entrelaçadas, depois do que chamavam de ‘amor’, mas que na verdade tinha outro nome: raiva.

Chamava de amor o sexo bom, as conversas fúteis noite adentro, as horas que passavam juntos fazendo maratonas de uma série policial qualquer, os dias resolvendo burocracias sobre seguro saúde e contas conjuntas no banco.

Chamava de amor o sonho de casar de branco, na igreja, olhando pra ele de smoking ao lado do melhor amigo que ela odiava, mas que ele fazia questão de ter no altar. A festa superfaturada e a lua de mel que seria mal aproveitada por conta do cansaço fruto da preparação do casório.

Chamava de amor todas as vezes que se ligavam por obrigação perguntando se o outro tava bem e ‘como foi o seu dia’. Achava normal passar por momentos de seca e outros em que os dois pareciam falar duas línguas completamente diferentes.

Chamava de amor todas as vezes que estava com ele, mas preferia estar sozinha, e todos os acordos que fez com ele de que nos dias que ele veria o futebol ele também jantaria coma família dela. Ou a levaria no cinema. Ou pra fazer compras. Ou qualquer outra coisa que fosse ‘boa pra ela’.

Chamava de amor as vezes que pediu que ele decidisse por ela. E chamava de amor também o ressentimento que sentia quando achava que a decisão dele estava errada, mas ela seguia mesmo assim porque o amor é isso. É comércio. Não, quer dizer, é barganha. Não, pera, é concessão. Ah, de jeito nenhum isso parece bom, né?

Chamava de amor agir como recatada na frente dos outros e como puta na cama, quando na verdade não queria ser nem um nem o outro, só queria ser ela mesma o tempo todo e que ele fizesse o mesmo. Chamava de amor criar uma rotina pra tudo. Ter hora pra ir e pra voltar, pra ver e pra não ver, pra ligar, pra comer, pra fazer a tal maratona, pra ir no cinema, pra transar, pra dormir junto, acordar separado.

Chamava de amor beijos, abraçados, segurar as mãos. Mas só com ele, com os outros não pode, é errado. É traição. Carinho mesmo é só com ele e só pra ele. O resto é resto. Só ele merece isso que chamava de amor. Amor seletivo esse, né?

Chamava de amor a exaustão que sentia, quando se permitia entrar em contato com o que estava sentindo de verdade, por tentar tanto tempo manter uma farsa que de amor não tinha nada. Mas era normal. ‘Faz parte’, diziam, ao mesmo tempo em que preparavam os arranjos do casamento por ela e pra ela.

Chamava de amor a solidão que sentia mesmo quando estava com ele, e a sensação de que ele sentia mesma coisa. Seu príncipe encantado estava tão preso no alto da torre quanto ela.

Mas tudo bem, ela pensava. É amor. É assim. Não é?

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Escrito pelaMaki
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10 Comentários
  1. Wanila  em junho 04, 2016

    Sempre leio o que você posta aqui, mas quase nunca comento, por causa da intensidade dos posts. quase sempre levo um tapa na cara e vejo tudo que há de errado na minha vida, e te adoro por isso! Você, com seus textos, me ajuda a me entender melhor. <3

    • Maki  em junho 04, 2016

      Wanila, tudo bom?
      Antes de mais nada, um apelo: por favor, não entenda pelos meus textos que a sua vida está ‘errada’! Não tem nada de errado, mesmo. Veja esses textos apenas como uma outra forma de olhar para as coisas, um jeito novo de lidar com cada situação. Isso não significa que existe errado ou certo! ♥
      Em segundo lugar, fico muuuuuito felizque os textos te ajudam a se entender melhor, essa é mesmo a proposta! E comente mais, eu adoro saber o que as pessoas estão pensando sobre o que eu escrevo!
      Um beijo!

  2. Clara Rocha  em junho 03, 2016

    esse texto, me lembrou essa música : https://www.youtube.com/watch?v=sShdzz33Csk

    • Maki  em junho 04, 2016

      Noossaaaa, essa música é um achado, hein? Que incrível!

  3. Aline  em maio 31, 2016

    E o que nos faz aceitar esse tipo de amor. Acreditando se tratar de amor? São tantas coisas né? Eu também já acreditei que o amor tinha que ser sofrido, cheio de drama que nem aqueles amores cheios de obstáculos da novela. Hoje acredito em um amor diferente, que cuida, que quer estar junto sem se sentir obrigado, mas por que se sente bem. um amor sem dramas, seja lá para quem for esse amor!

    Um beijo!

    • Maki  em junho 01, 2016

      Amor sem dramas. Exatamente! O amor de verdade não tem nenhum drama, ele simplesmente existe e todo mundo já sente. Acontece que a gente coloca mil coisas na frente achando que a pode controlar, fazer do nosso jeito, e não é bem assim, sabe?
      Amor não limita. E ponto.

  4. Lóri  em maio 31, 2016

    esse post me fez pensar em muita coisa. é uma pena toda essa heteronormatividade das relaçÕes, a cultura da monogamia que não se encaixa para todas e todos, o machismo sutil sobre ser puta e santa. são questões delicadas que nos deparamos com os outros. é toda uma cultura de contrato social interminável nos compromissos. e muitas vezes não atendem e não se encaixma na nossa vida, na nossa ética.

    esse post é uma cutucada, é isso? eu gostei. gostei muito mesmo.

    ficou sensacional.

    • Maki  em junho 01, 2016

      Oi, Lóri!
      Isso, esse post é uma cutucada não só em tudo isso que você falou em todo um sistema de pensamento que diz que as coisas ‘tem que’ serem feitas assim. A ideia de que a gente só tem a capacidade de amar uma única pessoa e que, ainda assim, esse amor tem que ser cheio de regras, se não ele acaba (e, ainda assim, tem horas que as pessoas acham que ele acaba mesmo). Amor de verdade não acaba. NUNCA. E também não limita nem tem regras, ele simplesmente é.

  5. Rafaela  em maio 31, 2016

    Conheci teu blog ontem pelo ‘indiretas do bem’ e amei. é tão natural, positivo, direto, pessoal, acolhedor. tão aperto de mão, abraço, carinho, amor. parece quase colo de mãe rs.

    • Maki  em junho 01, 2016

      Oi, Rafaela!
      Só tenho uma coisa a dizer: toma aqui um abraço *abraço*